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abril 19, 2005
E o corpo, ainda é pouco...
A verdade e o poder, uma aliança para além do bem e do mal
Castor M.M. Bartolomé Ruiz
A verdade está revestida com toda a roupagem significativa do bem e do justo. Aquilo que é verdadeiro parece que é eticamente inatacável. No seu lado sombrio parece se alojar o poder. O poder carrega o estigma do mal. Ele aparece como o responsável último por quase todos os vícios e paixões humanos que vão desde a ambição até a opressão, passando pela inveja, o ódio, etc.
Estes estereótipos conceituais da verdade e do poder parecem consolidados como verdades naturais. Porém, eles são do que símbolos culturais que instituímos para nossas práticas. Verdade e poder parecem dois conceitos irreconciliáveis, porém nada mais são do que dois símbolos inseparáveis.
A afirmação anterior é provocativa, mas não inconseqüente, vejamos. Em primeiro momento temos que despojar a verdade de suas vestes de inocência, pois toda verdade –seja ela qual for- produz efeitos de poder. Isso significa que a verdade, quando aceita pelos sujeitos, provoca efeitos de poder sobre suas vidas. Ou seja, a verdade tem o poder de influenciar a conduta dos sujeitos e das sociedades. Aliás, a conduta das pessoas e das sociedades é pautada pelas verdades que elas produzem e aceitam. As verdades socialmente aceitas têm o poder de induzir o comportamento das pessoas. É assim que uma verdade, quando se consolida como verdade para uma pessoa ou para um grupo, tem efeitos de poder sobre eles.
Podemos afirmar que toda verdade produz efeitos de poder. Os efeitos de poder da verdade são proporcionais ao seu grau de aceitação social. Verdades amplamente aceitas produzem efeitos de poder muito maiores. As verdades podem induzir o comportamento social das pessoas segundo os parâmetros por elas pro/postos.
Por sua vez, todo dispositivo de poder produz formas de verdade para se legitimar socialmente. O poder é uma fonte de produção de verdades, pois todo poder se consolida socialmente quando as verdades por ele produzidas são amplamente aceitas. Não existe dispositivo de poder que não produza formas de verdade, nem verdades que não produzam efeitos de poder. É desta forma que dois conceitos que vulgarmente parecem irreconciliáveis, atuam, efetivamente, como símbolos indissociáveis. Alguns exemplos podem nos esclarecer mais. O conceito de liberdade liberal está construído como uma verdade vinculada ao amplo e irrestrito exercício de nossos desejos. Segundo esse símbolo de liberdade, quando más conseguirmos realizar o que desejarmos, mais livres seremos. Com base nesta verdade amplamente aceita, os dispositivos de poder do capitalismo faz décadas que investiram maciçamente na produção dos desejos dos indivíduos. Hoje uma imensa constelação de saberes e de profissionais se dedicam a estimular desejos, a produzir necessidades, a provocar anseios, a fabricar sonhos, etc. Tudo isso com o objetivo de induzir o comportamento dos indivíduos sujeitando-os aos interesses institucionais produtores das verdades ofertadas. A maioria dos indivíduos não se questionam sobre como esses desejos, e as necessidades subseqüentes, surgiram e amadureceram neles. Ao acreditarem que são livres realizando seus desejos, procuram satisfazer aquilo que desejam, geralmente possuindo coisas, dando-se o paradoxo de que quanto mais desejos realizam mais se sujeitam aos dispositivos de poder que provocaram esses desejos. O paradoxo é maior porque quanto mais desejos realizam mais livres se sentem, quando na verdade esse modelo de liberdade os sujeita mais estreitamente aos dispositivos de poder responsáveis pelas verdades dos seus desejos. Neste caso, o símbolo de liberdade liberal é um tipo de verdade cujos efeitos de poder sujeita mais firmemente os indivíduos às estruturas que provocam seus desejos.
Podemos propor um outro exemplo. Nas últimas décadas o corpo foi ganhando importância na vida pessoal e social até o extremo em que podemos afirmar que vivemos uma ditadura do corpo. O sujeito pós-moderno foi perdendo a dimensão de profundidade que caracterizava ao sujeito tradicional, tornando-o cada vez mais epidérmico ou superficial. O limite da superficialidade se encontra na identificação do sujeito com seu corpo.
O efeito de poder desta verdade é o aumento da preocupação com o próprio corpo, chegando a um limite em que o sujeito pode gritar como máxima de vida: eu sou meu corpo! Os efeitos de poder desta verdade são visíveis. Academias repletas, aumento das cirurgias plásticas, medo das gorduras, obsessão com dietas, crescimento exponencial da indústria de cosméticos, o (ab)uso dos corpos em todas as instâncias mediáticas, medos e ansiedades com o próprio corpo, relacionamentos epidérmicos, etc.
As novas verdades sobre o corpo provocam amplos efeitos de poder sobre os sujeitos. Curiosamente poderíamos dizer que esse tipo de verdade era muito pouco "verdadeira" nas sociedades tradicionais, onde a preocupação com o corpo era muito menor e conseqüentemente seus efeitos de poder também eram menores. Os padrões de beleza nada mais são do que tipos de verdade com efeitos de poder.
Ampliando o exemplo anterior, percebemos que nas sociedades tradicionais a beleza feminina era a de formas arredondadas, quase gordinha, e a cor da pele branca; até o extremo das mulheres usarem pó de arroz para branquear sua pele. Se por trás de uma verdade existe um dispositivo de poder, aqui podemos detectar que as classes dominantes das sociedades tradicionais eram rurais, que a magreza era símbolo de pobreza e a gordura de opulência, que a pele branca era símbolo de que a pessoa não trabalhava na roça e pertencia à classe burguesa ou aristocrática e a pele morena era característica dos trabalhadores(as) rurais. Ao mudar os modos de produção, a magreza é símbolo de alimentação dietética e bem regulada e o moreno é símbolo de tempo livre para tomar o sol, enquanto as/os trabalhadores na sua maioria permanecem em espaços fechados onde sua pele fica necessariamente branca.
Nem toda vinculação entre verdade e poder tem efeitos negativos. Retomando a verdade sobre o corpo, podemos apontar alguns efeitos positivos de poder da verdade médica. O médico produz um tipo de verdade sobre o corpo com incisivos efeitos de poder. Na maioria das vezes poderíamos dizer que é um efeito de poder positivo. Por exemplo a insistência sobre a necessidade de exercício físico é um tipo de verdade relativamente recente. Faz umas décadas, poucas pessoas se dedicavam a fazerem caminhadas ou exercícios físicos cotidianos. Hoje, como um efeito de poder da verdade médica, muitas pessoas passaram a se preocupar com isso e incorporar o exercício como parte de sua rotina.
Outros muitos exemplos poderiam ilustrar a tese de que toda verdade produz efeitos de poder e que todo dispositivo de poder produz formas de verdade. Aliás, é só voltar os olhos para qualquer verdade e procurar os efeitos de poder que ela provoca, ou para qualquer dispositivo de poder e investigar quais são as verdades que ele produz para se legitimar. Esta é uma tarefa crítica da qual depende a possibilidade da autonomia do sujeito, ou caso contrário sua sujeição inconsciente aos tipos de verdades por ele aceitas e aos dispositivos de poder que o controlam.
Posted by Sandino at abril 19, 2005 11:28 PM