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setembro 30, 2005

10 razões para votar SIM

O Brasil é o país do mundo com o maior número de pessoas mortas por armas de fogo. Em 2003 foram 108 mortes por dia, quase 40 mil no ano! [Datasus, 2003] Arma de fogo é a primeira causa de morte de homens jovens no Brasil! Mata mais que acidentes de trânsito, AIDS ou qualquer outra doença ou causa externa. [Datasus, 2003]

1- Existem armas demais neste país.
Estima-se que o número total de armas em circulação no Brasil seja de 17,5 milhões [Iser-Small Arms Survey, 2005]. Apenas 10% dessas armas pertencem ao Estado (forças armadas e polícias), o resto, ou seja, 90%, estão em mãos civis. Está na hora deste país se desarmar!

2- Armas foram feitas para matar.

No Brasil, 63,9% dos homicídios são cometidos por arma de fogo, enquanto 19,8% são causados por arma branca [Datasus, 2002]. Por quê? Porque armas de fogo matam com eficácia e sem nenhum risco para o agressor. Diante de uma faca, você corre, grita, chuta. A chance de morrer em uma agressão com arma de fogo é muito maior: de cada 4 feridos nos casos de agressões por arma de fogo, 3 morrem. [Datasus, 2002] As tentativas de suicídio com arma de fogo também são mais eficazes: 85% dos casos acabam em morte. [Annals of Emergency Medicine, 1998].

3- Ter armas em casa aumenta o risco, não a proteção.
Usar armas em legítima defesa só dá certo no cinema. Segundo o FBI [FBI, 2001], “para cada sucesso no uso defensivo de arma de fogo em homicídio justificável, houve 185 mortes com arma de fogo em homicídios, suicídios ou acidentes”. As armas em casa se voltam contra a própria família. Os pais guardam armas para defender suas famílias, mas os próprios filhos acabam por encontrá-las, provocando-se, assim, trágicos acidentes. No Brasil, duas crianças (entre 0 e 14 anos) são feridas por tiros acidentais todos os dias. [Datasus, 2002].

4- A presença de uma arma pode transformar qualquer cidadão em criminoso.
Armas de fogo transformam desavenças banais em tragédias irreversíveis. Em São Paulo, segundo a Divisão de Homicídios da Policia Civil [DHPP-SP 2004], o primeiro motivo para homicídios é “vingança” entre pessoas que se conhecem e que não possuem nenhum vínculo com o tráfico de drogas ou outras atividades criminosas. Para se ter uma idéia, em São Paulo, as vítimas de latrocínio – matar para roubar – correspondem a menos de 5% das vítimas de homicídio. [Secretaria de Segurança Pública - SP 2004]

5- Quando existe uma arma dentro de casa, a mulher corre muito mais risco de levar um tiro do que o ladrão.
Nas capitais brasileiras, 44% dos homicídios de mulheres são cometidos com arma de fogo [Datasus, 2002]. Dois terços dos casos de violência contra a mulher têm como autor o próprio marido ou companheiro. [Datasenado, 2005]. De acordo com dados do FBI, relativos a 1998, para cada vez que uma mulher usou uma arma em legítima defesa, 101 vezes esta arma foi usada contra ela.

6 - Em caso de assalto à mão armada, quem reage com arma de fogo corre mais risco de morrer.
É um mito considerar que com uma arma o cidadão está mais protegido. Na maioria dos assaltos, mesmo pessoas treinadas não têm tempo de reagir e sacar sua arma. Quando o cidadão reage, ele corre mais risco de se ferir ou ser morto. Uma pesquisa realizada no estado do Rio de Janeiro mostra que: “a chance de morrer numa reação armada a roubo é 180 vezes maior de que morrer quando não há reação. A chance de ficar ferido é 57 vezes maior do que quando não há reação.” [Iser, 1999]

7- Controlar as armas legais ajuda na luta contra o crime.
A - O mercado legal abastece o ilegal. Para se ter uma idéia, 80% das armas apreendidas pela policia do Rio de Janeiro (de 1993 a 2003) são armas curtas e 76 % são brasileiras; 30% delas tinham registro legal [DFAE, 2003]. As armas que mais matam no Brasil são brasileiras, principalmente os revólveres 38 produzidos pela Taurus.
B - As armas compradas legalmente correm o risco de cair nas mãos erradas, através de roubo, perda ou revenda. Só no Estado de São Paulo, segundo a Secretaria de Segurança Pública, entre 1993 e 2000, foram roubadas, furtadas ou perdidas 100.146 armas (14.306 por ano). Ou seja: bandidos não compram armas em lojas, mas são as armas compradas em lojas que vão parar nas mãos dos criminosos.

8- “O Estatuto do Desarmamento é uma lei que desarma o bandido.”
A maioria dos artigos do Estatuto do Desarmamento (lei n° 10.826, 22/12/2003) dá meios à policia para aprimorar o combate ao tráfico ilícito de armas e para desarmar os bandidos. Ele estabelece a integração entre a base de dados da Policia Federal, sobre armas apreendidas, e a do Exército, sobre produção e exportação. Agora as armas encontradas nas mãos de bandidos podem ser rastreadas e as rotas do tráfico desmontadas. Pela nova lei, todas as novas armas serão marcadas na fábrica, o que ajudará a elucidar crimes e investigar as fontes do contrabando. Para evitar e reprimir desvios dos arsenais das forças de segurança pública, todas as munições vendidas para elas também vão ser marcadas. A implementação do Estatuto em sua totalidade é um dos principais instrumentos de que dispõe hoje a sociedade brasileira para desarmar os bandidos.

9 - Controlar as armas salva vidas
As leis de controle de armas ajudam a diminuir os riscos para todos. Na Austrália, 5 anos depois de uma lei que praticamente proibiu a venda de armas de fogo, a taxa de homicídios por arma de fogo caiu 50%. Entre as mulheres, a diminuição foi de 57% [Australian Institute of Criminology, 2003]. Um estudo da Unesco, publicado em 2005, mostra que Austrália, Inglaterra e Japão, onde as armas são proibidas, estão entre os países do mundo onde MENOS se mata com arma de fogo, enquanto os Estados Unidos, um dos países mais liberais com as armas, aparecem em 8º lugar, entre os países mais violentos do mundo. No Brasil, comparando-se os sete primeiros meses de 2004 com os sete primeiros meses de vigência da Campanha de Desarmamento - agosto de 2004 a fevereiro de 2005 - um estudo do Ministério da Saúde mostrou que o índice de redução de internações por lesões com arma de fogo no Rio de Janeiro foi de 10,5% e, em São Paulo, de 7%.

10 - Desarmamento é o primeiro passo
A proibição do comércio de armas de fogo e munição, isoladamente, não é capaz de solucionar o problema da criminalidade. Mas é um passo fundamental em direção a uma sociedade mais segura. Temos que continuar trabalhando por pactos internacionais pelo desarmamento, por melhorias no sistema de justiça e nas policias e claro, pela redução da desigualdade social em nosso país. Mas para isso é preciso dar o primeiro passo: no dia 23 de outubro vai acontecer o primeiro referendo da história do Brasil. É nossa oportunidade de mostrar em que tipo de sociedade queremos viver.A vitória do SIM pode ser o início de uma nova história, o começo da “virada de página” na questão da (in)segurança no Brasil!

Pela primeira vez está nas nossas mãos o poder de fazer alguma coisa pelo nosso bem mais importante: a vida! Não percamos esta oportunidade deixando tudo como está. Em 23 de outubro diga sim à vida. Vote pelo desarmamento!

Posted by Sandino at 11:58 PM | Comments (8)

"Disque SIM" é lançado no Brasil

A partir do dia 1º de outubro, o número de telefone 031 31 8801-0707* estará disponível para esclarecer dúvidas dos cidadãos e cidadãs que desejam se integrar à campanha e divulgar o SIM à proibição do comércio de armas e munição.
O serviço conta com a participação voluntária de famosos como Elba Ramalho, Heloísa Perissé, Isabel do vôlei, Lázaro Ramos, Xuxa e Zezé Motta, que emprestaram suas vozes para a gravação das opções do menu.
A idéia é estimular o envolvimento de pessoas, grupos, empresas e organizações que já se decidiram pelo SIM e estão dispostos a multiplicar voluntariamente as informações da campanha.

Propaganda gratuita
Também neste sábado começa a propaganda gratuita no rádio e na televisão das duas frentes parlamentares a favor e contra a proibição do comércio de armas e munição no país. Até 20 de outubro, as duas frentes parlamentares terão juntas 36 minutos diários para divulgar seus argumentos, sendo 18 minutos no rádio e 18 na TV. De acordo com resolução do TSE, haverá rodízio na ordem de apresentação das duas frentes. No rádio, os programas serão veiculados em dois horários: das 7h às 7h09 e das 12h às 12h09. Na televisão, haverá exibições também em dois horários: das 13h às 13h09 e das 20h30 às 20h39.
Além dos boletins em horários fixos, as emissoras de rádio e televisão vão reservar 20 minutos diários para inserções de 30 segundos, distribuídas ao longo da programação.

* Ligações originadas do código de área 31: tarifa de ligação local para telefone móvel, exceto se originadas de um Oi, que têm tarifa de R$ 0,31 mais tributos. Ligações originadas de outras regiões: tarifa de longa distância para telefone móvel, variando de acordo com a operadora. (Consulte a tarifa com a operadora).

Posted by Sandino at 11:57 PM | Comments (1)

Que fim levou Paris...

Maio de 1968
Por Marcelo Xavier

1871. Toda a França está ocupada pelo exército prussiano. Ao tentar interferir na sucessão da Espanha, Napoleão III desagradou a Prússia, que mantinha os ibéricos sob sua influência. Os desentendimentos entre o imperador prussiano culminaram na Guerra Franco-Prussiana (1870-71). Durante a progressão do conflito, as tropas francesas sofriam derrotas sucessivas, sendo que o próprio imperador já havia se rendido e se encontrava prisioneiro. Toda a França está ocupada. Toda? Não! Cercado pelo inimigo, os parisienses revoltaram-se num feroz movimento que passou para a história com o nome de Comuna. O fator culminante para a criação daquele estado “citadino” foi a humilhante capitulação dos monarquistas em favor da Prússia. Os adeptos de Napoleão, apoiados pelos camponeses e por grandes proprietários, davam um cavalo para não voltar à revolução social de 1848. Por cinco meses, o inimigo cercou a futura Cidade-Luz. A derrota do exército francês havia selado a guerra. O povo de Paris, ao perceber que o governo provisório (instalado em Versalhes) nada faria por eles, decidiu levantar barricadas, fechando a cidade. Apesar da patriótica resistência, Versalhes já havia assinado a rendição, em janeiro daquele ano. Em conseqüência disso, Paris se fechou para si mesmo, criando um regime político particular contra tudo e contra todos, como os gauleses das histórias de René Goscinny. Em maio de 1871, uma violenta repressão promovida pelas forças reacionárias derrubou as barricadas e tomou a cidade, executando milhares de trabalhadores amotinados: pelo menos 20 mil parisienses foram mortos durante o ataque. Depois que a poeira assentou, ficou um porém: o temor de que, mais cedo ou mais tarde, novas barricadas fossem erguidas. Para evitá-las, a prefeitura destruiu todos os prédios nos bulevares e ruas avenidas centrais foram todas alargadas. Com tamanha largura, seria impossível fechá-las com barricadas. Mas Paris seria sempre Paris — como diria Bogart em Casablanca — e maio seria sempre maio. Quase um século após a Comuna, o atavismo “revolucionário” foi mais forte. Tanto que, nas trágicas noites de 10 e 24 de maio de 1968 — há exatos trinta e cinco anos, nada menos de 40 barricadas foram erguidas nos quartiers da margem esquerda do Sena. Entre recordações nostálgicas dos anos 60 e declarações de desilusão a respeito dos fins e meios daquele momento histórico, a rebelião dos jovens é sempre lembrada.

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O COMEÇO — De 1960 até maio daquele ano (que, segundo Zuenir Ventura, não acabou), surgiu na França um movimento contestatório da juventude contra a sociedade dos seus pais e avós. De acordo com o historiador Alexandre Roche, tal contestação nascia do abandono dos ideais de liberalismo e comunismo, da revolução sexual, da democratização dos costumes, das modificações da Igreja e de uma abordagem existencial da vida. “A França de 1958 era uma sociedade do século 19, sobretudo no interior”, diz Roche. Ele sustenta que, de 1946 a 68, o movimento jovem foi sustentado e impelido por uma explosão demográfica pela qual a França não passava desde os tempos do Iluminismo: em 1964, a proporção de jovens que entravam na universidade deveria ser multiplicada por dez em relação a 1946. “Foi esse peso que deu aos jovens a sua força”, revela.
A Rue d’Ulm, onde fica a Escola Normal Superior, exercia uma grande influência sobre a Universidade. Pensadores daquela instituição liam de Proudhon e Malthus, de Lênin a Taylor e achavam que esses autores seriam tão revolucionários quanto negligenciados. Junto a estes, os métodos de Foucault, Lacan, Barthes, Levi-Strauss e Sartre serviam para que eles criticassem o comodismo e a mistificação. Havia agitação no ar. Roche entende que o movimento se dividiu em três partes: a primeira, com o “Não” otimista, em maio; a utopia e o político, em junho; a contestação sistemática ou o “Não” radical. Os movimentos de abril e maio dividiam facções de esquerda, liberais e conservadores. Também por isso, a tentativa de trazer camponeses e operários ao movimento fracassou e perdeu o combate. Por fim, veio a última fase do conflito, a esquerda, solitária e radical, libertária, anarquista, maoísta, guevarista, socialista, comunista e sem poção mágica, foi atacada pela polícia, perseguida, detida, condenada e desterrada. Como em 1871, a esquerda do “Nós Iremos até o Fim” e do “Início de uma Luta Prolongada” acabou pagando caro por suas utopias.
A HISTÓRIA — A guerrilha urbana de maio de 68, em Paris, começou dois meses antes na Universidade de Nanterre, por um motivo reles: em março, a reitoria da instituição (12 mil alunos) baixou norma proibindo que rapazes visitassem moças em seus dormitórios. De carona, um jovem estudante judeu-alemão, Daniel Cohn-Bendit, reuniu um grupo de cem colegas, e invadiu a secretaria da escola. Assustado com a represália, o reitor Pierre Grappin suspendeu as aulas chamou a polícia. O incidente foi, de início, apenas um fato isolado. Porém, foi ali que nasceu a estrela de Bendit no meio estudantil, que se transformou em Dany le Rouge (Daniel o Vermelho, por causa da cor dos seus cabelos), um Robespierre de centro acadêmico. Ele era bolsista do governo alemão, filho de pais judeus que emigraram para a França fugindo do Nazismo. Contra a estudantada de esquerda, um grupelho fascista, formado por ex-pára-quedistas, o Occident, apelava para a ignorância seus adversários. Estes, não se intimidavam: enchiam as paredes brancas da universidade com grafites. Muitos ficaram famosos: Aqui termina a liberdade! Nem Mestre nem Deus! O Vietcongue vencerá! Amemo-nos uns sobre os outros. Somos todos enragés (raivosos). E o mais célebre: Corre, camarada, o velho mundo está atrás de ti!... No dia três, os estudantes de Nanterre organizam uma manifestação na Sorbonne. No local, corria o boato de que os baderneiros do Occident pretendiam invadir a escola. Logo, esquerdistas ululantes começam a demolir classes e mesas. Rilham os dentes e se armam. A polícia é chamada. Conflitos entre estudantes e a tropa de choque ocorrem no Quartier Latin. No rabo de arraia, a polícia faz 596 prisões.
Para organizar a arruaça, os estudantes precisavam de um líder. No meio da bagunça, La Rouge aparece, entre apupos e assovios. É Daniel Cohn-Bendit, que conclama a todos, e discursa: “A Sorbonne deve transformar-se numa nova Nanterre!”. Os aplausos chegam aos ouvidos até então ensurdecidos do reitor Jean Roche, que toma uma decisão inédita na história da Universidade de Paris: escreve ao Comissariado de Polícia do Quartier Latin exigindo medidas para acabar a patacoada naquela histórica instituição. À tarde, é a vez dos gendarmes invadirem o pátio da faculdade, como iconoclastas furibundos. Se Deus não existe, tudo é permitido. No rescaldo do dia seguinte, as aulas são suspensas, a União dos Estudantes da França (Unef) e o Sindicato Nacional de Ensino Superior (Snesup) convocam greve por tempo indeterminado.
Seis de maio de 1968. Cresce a escalada da violência em Paris. Uma multidão sobe a Rue St. Jacques, disposta a retomar a Sorbonne ocupada por policiais. Rodolfo e Mimi não viveram para ver a cena: La Rouge, Alain Geismar (secretário do Snesup) e Jaques Sauvageot (vice-presidente da Unef) lideram mais uma baderna no Quartier Latin. As primeiras barricadas aparecem. Um poderoso efetivo da tropa de choque impede-lhes a passagem. A batalha começa. De um lado, rapazes e moças jogam nos policiais paralelepípedos arrancados das ruas. Estes respondem com granadas de gás lacrimogêneo. A vanguarda dos estudantes é formada por rapagões, a cabeça protegida por capacetes de moto. As moças repõem a munição, com paralelepípedos e pedras. Durante a batalha, que durou quase duas horas, 350 policiais foram feridos, a maioria com fraturas. Os estudantes se aperfeiçoam: protegem os olhos com óculos de mergulhadores e bicarbonato de sódio, como antídoto contra o gás. Rádios portáteis transmitem-lhes ordens da liderança. É o prenúncio das barricadas que deixariam Paris em chamas nas noites de 10 e 24 de maio.
Naquela altura, a cobertura do incidente pela Imprensa (eram mais de mil repórteres, a maioria pega de surpresa) foi realizada apenas por emissoras periféricas, com transmissores localizados em Luxemburgo ou em Monte Carlo, e com unidades móveis em Paris. Com o silêncio da Office de la Radio Télévison Française, (ORTF, estatal), os franceses só ficaram sabendo da situação “por fora”. Censura? O constrangimento foi tanto que, envergonhados e revoltados, seus funcionários se declararam em greve geral em prol da liberdade de informação.
Um dos 1.434 correspondentes da rebelião é o jornalista Flávio Alcaraz Gomes, que escreveu A Rebelião dos Jovens (editora Globo, esgotado) sobre os incidentes de maio em Paris. Enviado à Cidade-Luz para cobrir uma conferência diplomática, se viu no meio de uma guerra civil. Como testemunha ocular, ele pôde descrever, com riqueza de detalhes, o que aconteceu durante a balbúrdia estudantil de 1968: “Acabei de despachar pelo teletipo meu serviço para o Correio do Povo e volto ao Boulevard St. Michel, foco da rebelião. Uma multidão de jovens está entrincheirada em pelo menos 20 barricadas, de onde grita insultos contra o governo. 'De Gaulle assassino’ é a frase repetida em uníssono. A Polícia se decide: é preciso 'limpar' o quartier antes de o dia nascer. 2h50min. A polícia ataca. Parece uma carga de infantes medievais. A primeira barricada, na metade da avenida, cai com pouca resistência. As próximas ao Jardim de Luxembourg, porém, parecem inexpugnáveis. Quando as tropas se aproximam, são recebidos com uma saraivada de pedras e por dezenas de automóveis incendiados, jogados lomba abaixo. Gente chora, devido ao gás e às pancadas. Sirenes rasgam a noite. Fogueiras por toda parte. Moços e moças bradam desesperados por socorro - e a guerra prossegue até às 6h da primeira manhã em que Paris esteve em chamas”.
A Paris dos amantes agora arranca paralelepípedos das ruas e enche os muros de dizeres: Soyez solidaires et non solitaires! (Sejam solidários, e não solitários!); Même si Dieu existait il faudrait le supprimer (Mesmo se Deus existisse, seria preciso suprimi-lo); À bas les journalistes e ceux qui veulent les ménager (Abaixo os jornalistas e aqueles que querem manejá-los); Les syndicats sont des bordels (Os sindicatos são bordéis); La liberté est le crime qui contient tous les crimes (A liberdade é o crime que encerra todos os crimes); Ceux qui font les révolutions à moitié ne font que se creuser un tombeau (Aqueles que fazem as revoluções pela metade nada mais fazem do que cavar seu túmulo); E, destacando-se das demais, a que ficou como marca registrada: Défense d`interdire! (É proibido proibir).
“CHIENLIT” — A segunda noite das barricadas aconteceu a 24 de maio de 1968, logo depois de o presidente Charles de Gaulle ter proposto um referendo para decidir se permaneceria ou não no governo. Ao mesmo tempo, o movimento estudantil tentava contaminar os operários. Uma semana antes, centenas de fábricas foram ocupadas pelos trabalhadores. No dia 20, o número total de grevistas chagou a 10 milhões. La Rouge foi proibido de permanecer na França. Dois dias antes, a oposição não conseguiu obter votos necessários para a moção de censura a Georges Pompidou, primeiro-ministro, na Assembléia Nacional. Estudantes se manifestam contra a expulsão de Cohn-Bendit. Um a um, os serviços públicos essenciais interrompiam o trabalho. O aeroporto de Orly fechou. Os vôos eram obrigados a descer em Le Bourget. Mas as coisas se complicaram mesmo quando as garotas do famoso cabaré Lido declararam-se também em greve.
Flávio Alcaraz Gomes conta que ele também viu elementos estranhos ao movimento estudantil infiltrarem-se em seu meio, usando motosserras. “Em questão de minutos, os plátanos centenários do boulevard Saint Michel eram abatidos para engrossar as barricadas, nas quais se empilhavam móveis, pedras e automóveis”, revela. “Ao mesmo tempo, outros grupos profissionais, empregando compressores de ar, literalmente descascavam a rua, retirando-lhes os paralelepípedos, para munição dos rebelados”. Após a convulsão, a Prefeitura de Paris passou a asfaltar todas as ruas e avenidas. Foi nesse momento que, voltando de uma viagem à Romênia, De Gaulle, furioso, exclamou: “La réforme oui, la chienlit non”. Pouca gente entendeu o chienlit. Depois, descobriram: defecar no leito. “É o que o general-presidente iria evitar que acontecesse”.
Nas catacumbas, o Partido do Medo se insurgia. Não possuía programa nem estatutos, mas se transformou na mais poderosa agremiação política do país. Seus integrantes eram a maioria silenciosa, que temia o pior. “Nos dias imediatos à segunda noite das barricadas, porém, de Gaulle parecia um moribundo ao ver as dificuldades internas derrubarem seus sonhos de liderança européia”, conta Alcaraz.. “Por mais que seus porta-vozes literários e filosóficos alardeiem o contrário, o francês é um dos povos mais aburguesados do mundo, e a perspectiva de ver instalada em sua terra uma república anárquico-vermelha começou a deixá-lo em pânico. A reação não tardaria a se fazer sentir”.
REI POSTO — Terça-feira, 28 de maio. De Gaulle não dá mais sinal de vida. François Mitterand, então presidente da Federação da Esquerda e adversário do general desde a Resistência, propõe a formação de um governo provisório dirigido pelos esquerdistas coligados. Também se apresenta candidato à Presidência da República. Já Pierre Mendès-France, ex-primeiro-ministro da 4a República, declara-se também candidato. “Tudo é procedido e divulgado como se a França estivesse acéfala e o seu velho rei, morto, a majestade perdida”, analisa o jornalista. A situação torna-se mais explosiva quando, naquela noite, cruzando a fronteira e com o cabelo pintado de preto, Dani (agora ex-vermelho) instala-se na Sorbonne e convoca a imprensa para proclamar o óbvio: a anarquia tinha se instalado na França.
Paris, 28 de maio de 1968. A França está paralisada. Nas ruas, multidões de estudantes e de operários (em manifestações distintas, já que os trabalhadores consideram a estudantada um bando de filhinhos de papai) substituem o slogan “De Gaulle assassin” por “De Gaulle démission”. As pessoas abandonam as cidades. De repente, o suspense e, logo, o pânico: De Gaulle havia desaparecido. No dia anterior, sindicatos, empresários e governo negociavam um acordo que previa aumento de salários, redução de horas de trabalho e a participação dos trabalhadores na gestão das empresas. No dia 29, todos souberam: De Gaulle havia partido secretamente para Baden-Baden. O objetivo era encontrar-se com o general Massu e os principais comandos, num quartel-general das forças armadas francesas na Alemanha. Fez um apelo dramático: ou o Exército o apoiava ou a subversão totalitária tomaria conta do país. Os oficiais se comoveram, e o general Metz, comandante da praça de Paris, jurou lealdade ao presidente.
“RETOUR A LA NORMALLE” — De Gaulle sentiu-se vencedor. Voltando do encontro secreto, o primeiro mandatário francês dirige-se à nação pelo rádio e televisão. Com firmeza, anuncia a dissolução da Assembléia nacional e diz que não renuncia e convoca eleições gerais, que são realizadas em dois turnos, a 23 e 30 de junho de 1968. No mesmo dia, cerca de 800 mil pessoas manifestam-se em apoio a De Gaulle em Paris. A rebelião dos jovens passou a ter seus dias contados. No dia 31 de maio, governo é reorganizado. A nova equipe tem 19 ministros e secretários de Estado remanescentes da anterior, mas doze deles apenas trocam de função — é o chamado ‘seis por meia-dúzia’. Como dizia um cartaz, com um desenho de um rebanho de ovelhas, afixado na Sorbonne: de volta à normalidade.
A pá-de-cal na Rebelião de Maio ficou a cargo da maioria silenciosa, quando o Partido do Medo demonstra a sua pujança. Concluídas as apurações, os resultados foram surpreendentes: os gaullistas conquistam 297 das 387 cadeiras no parlamento. Seus aliados Republicanos, 53, e as esquerdas reunidas, 137. O Partido Comunista tem seus 73 assentos reduzidos a 34 e a Federação da Esquerda, do ex-candidato-a-candidato François Mitterrand, que antes da crise tinha 121 deputados, consegue eleger apenas 57. Falando ao France Soir, seus inconsoláveis líderes praguejam: “Pagamos pelas barricadas que não erguemos”.
CONCLUSÕES — Flávio Alcaraz Gomes conta em suas memórias que, terminada a guerrilha de maio de 1968, partiu em peregrinação profissional pela Europa, retornando a Paris um mês mais tarde. “Quando desci no aeroporto de Orly, completamente normalizado, e dali me dirigi ao meu bairro - o Quartier Latin - fui percebendo, ao longo dos 14 quilômetros do caminho, que as coisas haviam mudado. As bandeiras vermelhas e negras tinham sumido”, descreve. Em seu lugar, guirlandas tricolores drapejavam ao vento ameno de uma primavera a substituir o inverno de sombras e de medos de maio. “Desço o boulevard Saint Michel e o noto fisicamente diferente: seus plátanos centenários, serrados criminosamente pelos anarquistas, estavam substituídos por mudinhas novas, e o antigo calçamento de paralelepípedo coberto por espessa camada de asfalto para evitar que fosse novamente descascado. Sorbonne e Odeon estavam fechados para reparos. Enfim, as mudanças aparentes eram essas. E as mudanças essenciais: teriam elas acontecido na cabeça das gentes?”.
O filósofo Allain Finkielkraut, que participou das manifestações, entende que era preciso “desestabilizar certas convenções e denunciar uma certa ordem repressiva” mas, segundo ele, não se pode exagerar a importância de maio. “A substituição do ideal hedonista pelo ideal ascético estava inscrita na propaganda da nossa sociedade”, explica. “O episódio acelerou um processo já em curso, ligado ao individualismo”. Para Finkielkraut, 1968 não foi uma revolução: “o movimento surpreendeu os próprios atores, não foi fomentado”, entende o filósofo. “Isso explica em parte a nostalgia existente. Acontecimento é o termo mais adequado como definição”. A respeito dos “atores”, Flávio Alcaraz tece sua crítica no sentido de que os protagonistas da revolta, como Cohn-Bendit, se transformaram num ícone mais do lirismo da aura de 68 do que num homem que manteve sua convicção ao espírito de Maio.
O próprio Dani le Rouge se defende. Hoje ex-prefeito-adjunto de Frankfurt e deputado europeu eleito pelo Partido Verde alemão, Cohn-Bendit corrobora a tese de que, como todos, foi pego de surpresa pelos acontecimentos e entende que a revolução é um fantasma das sociedades: para ele, elas só precisam mudar. Quanto à batalha campal pelas ruas de Paris, ele acredita que elas são “falsas”: “elas não são nada comparadas com as revoltas de camponeses, ainda atuais”. Ao invés de revolução, a revolta juvenil canalizou perspectivas. “[1968] abriu uma brecha para um movimento social heterogêneo que procurava expressar-se”, revela. Sobre o “fracasso” eleitoral, ele defende que não havia força capaz de fazer a revolução, muito menos capaz de obter maioria parlamentar. “Até os que participaram da greve geral acabaram votando em De Gaulle: não queriam comunistas no poder, e Mitterand entendeu que uma esquerda radical jamais seria maioria”, diz le Rouge. “Perdemos no [terreno] político, mas ganhamos no sócio-cultural”, conclui.

Posted by Sandino at 11:50 PM | Comments (1)

setembro 21, 2005

Um país sem armas é melhor!

A afirmação acima, publicada na edição passada de Trip parece óbvia. E é. Como quase tudo o que sabemos ser melhor para nós e nossas vidas, mas que se torna incrivelmente complexa na hora de transformar a teoria em prática. Assim é a questão sobre o direito do uso de armas num país que, pasmem, acaba de ser apontado pela Unesco, em junho deste ano, o número um no ranking de homicídios por arma de fogo em números absolutos (mais de 300 mil pessoas em dez anos). E a esmagadora maioria dessas mortes não é provocada por armas ilegais de grande calibre, como argumenta os opositores do desarmamento. Mais de 90% das armas apreendidas em crimes em nosso país são de calibre permitido e entraram na sociedade legalmente. E as maiores vítimas dessa tragédia cotidiana são pessoas de até 25 anos. Os jovens, aqui, são mortos por balas numa proporção três vezes maior do que no resto da população.
Sem grandes alardes, no ano de 2003 foi votada uma mudança radical na legislação sobre armas no Brasil. Um pacote de leis chamado Estatuto do Desarmamento, de autoria do deputado federal Luiz Eduardo Greenhalgh (PT/SP), aquele que perdeu a disputa da presidência da Câmara dos Deputados para o hoje famoso Severino Cavalcanti (PP/PE). O que poucos se dão conta é que o atualmente badalado referendo, aprovado pelo Congresso em julho deste ano e que obriga todos os eleitores brasileiros a votar no próximo dia 23 de outubro, já estava previsto no mesmo Estatuto – carecia apenas de aprovação do Congresso Nacional.

Posted by Sandino at 10:26 AM | Comments (5)