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janeiro 31, 2006
Aberto primeiro processo por racismo na internet
Corre na 6a. Vara Criminal de Brasília um caso inédito. Trata-se de um processo por crime de racismo praticado na internet. É o primeiro do gênero no país. O Ministério Público do Distrito Federal acusa um estudante da UnB de difundir na rede mundial de computadores mensagens consideradas ofensivas à raça negra.
O acusado se chama Marcelo Valle Silveira Mello. Está matriculado no curso de Letras da UnB, na cadeira de japonês. Contrário ao sistema de cotas da universidade, ele manifestou sua posição publicamente, por meio da internet. Entre outras qualificações, chamou os negros de “macacos subdesenvolvidos”, “ladrões”, “vagabundos”, “malandros” e “sujos”.
Processado pelo promotor de Justiça Marcos Antônio Julião, o estudante deveria ter prestado depoimento na 6a Vara no dia 23 de janeiro. Seus advogados, porém, impetraram um recurso chamado tecnicamente de “incidente de sanidade.” Significa dizer que alegam que seu cliente não estaria no seu juízo perfeito.
As mensagens de cunho racista foram divulgadas, entre junho e julho de 2005, no Orkut, um sítio de relacionamento mantido pela empresa Google. Permite que o internauta estabeleça contato com comunidades virtuais compostas de pessoas com as quais tenha afinidade de interesses.
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Morte e tabu
Por Denise Mota*
Em meio ao horror e ao delírio da guerra, uma lufada de amizade, juventude e inocência. Não se trata de “O resgate do soldado Ryan”, mas de uma recuperação muito mais próxima das latitudes sul-americanas: “Iluminados por el fuego”, resgate fílmico da história dos 655 mortos, 1.100 feridos e 11.313 prisoneiros que combateram sob a bandeira argentina na Guerra das Malvinas, em 1982. O longa venceu o Prêmio Especial do Júri no Festival de San Sebastián em 2005 e tem previsão de estréia no Brasil no primeiro semestre desse ano.
Dirigido por Tristán Bauer (do documentário “Evita, o túmulo sem paz”, exibido em 1998 na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo), a produção é uma ficção com registros documentais que devolve rosto e voz a personagens apagados da memória argentina depois do fracasso do país no conflito com o Reino Unido. O tema ainda é tabu numa sociedade que aprendeu a “desmalvinizar” (isso é, não tocar mais do assunto, ordem expressa dos mandatários do país aos soldados a caminho de casa) assim que o embate chegou, sem honra nem glória, ao fim.
Cena do filme "Iluminados por el fuego", do diretor Tristán Bauer
“Tratar das Malvinas é difícil. Esse é ainda um tema abafado pelo cinema. Depois de 23 anos, e num período em que mais de mil ficções foram filmadas na Argentina, pouquíssimas tratam da guerra”, diz Bauer, de 46 anos.
“Há uma contradição na maneira como se vê tudo isso, o sentimento de recuperação de um território, entendido como nacional, com uma guerra no meio, e que se tornou um crime executado pelos generais da ditadura. Mas que teve também a população, no momento de anúncio do conflito, apoiando a decisão, como se estivéssemos entrando num campeonato de futebol. Aí veio a derrota e, depois, já não se fala mais disso”, analisa Bauer. “Sabíamos que se tratava de um tema complicado, mas assumimos o desafio.”
Entre eles, conseguir patrocínio para a produção, obter auxílio do Exército e, especialmente, vencer a desconfiança dos habitantes das Malvinas. A ajuda do Exército, para serem reproduzidas cenas de batalha, nunca se concretizou, apesar do apoio público às filmagens por parte do presidente argentino Néstor Kirchner. O diretor teve que recorrer aos serviços de uma companhia de dublês e efeitos especiais).
“Quando começamos a buscar apoios, as produtoras falavam: ´Esquece isso, das Malvinas as pessoas não querem nem ouvir falar`”, conta Bauer. E, uma vez desembarcados nesse território aparentemente destinado ao esquecimento, não encontraram uma população exatamente receptiva. “Filmar nas ilhas foi muito complexo. Chegamos depois de ´Fuckland`, filme que gerou muito antipatia por lá. A relação com os habitantes era de suspeita. Acabamos estabelecendo um relacionamento mais próximo com os jovens e uma convivência mais limitada com quem era mais velho. Mas foi, sempre, uma relação de respeito.”
Realizado em 2000 por José Luis Marques, “Fuckland” mostrava, com o propósito de emprestar algum humor e tom documental à situação, o desenvolvimento do plano de um jovem argentino: entrar clandestinamente nas Malvinas, engravidar uma mulher que fosse descendente de britânicos e, assim, ir reconquistando o território, através de um novo “povoamento”.
“Iluminados por el fuego” também coloca todas as suas fichas na valorização do sentido humano por trás da questão territorial e igualmente se ocupa de respingar cores da realidade em meio às liberdades garantidas pela ficção, mas o faz de modo muito diverso.
O longa-metragem é baseado em livro homônimo escrito por Edgardo Esteban, 43, hoje jornalista e presidente da Associação de Correspondentes Estrangeiros da Argentina. Aos 19 anos e faltando apenas uma semana para deixar o serviço militar, Esteban recebeu a convoção para lutar pela Argentina nas dez semanas em que perdurou o conflito.
Sua narrativa, realizada em parceria com Gustavo Romero Borri, descreve alguns desses 70 dias que abalaram definitivamente seu mundo, quando presenciou fome, frio, castigos, arbitrariedades e mortes. Por uma troca na escala de guarda dos soldados, Esteban não estava no seu posto quando uma bomba matou um colega de luta, Eduardo Vallejo -recruta que lhe substituía excepcionalmente naquele dia (leia trecho do livro abaixo).
Edgardo Esteban voltou às Malvinas em 1999 e depois em 2002 e 2003, para colaborar na produção do filme, experiência que lhe “fechou feridas”, segundo descreve. “Tenho minhas próprias Malvinas dentro de mim, e voltar ali foi poder tocar esse passado e dizer: ´Chega`. Fazer o que sempre digo: tratar de me comprometer com a vida.”
Ao longo dos dias e das baixas, os soldados perdem companheiros, perdem contato com a família, perdem a noção do tempo, já não compreendem por que e como estão lutando, perdem a vontade de viver. Em “Iluminados por el fuego”, a experiência é revivida sob o protagonismo de outro Edgardo, Leguizamón, nome do personagem encarnado por Gastón Pauls (o malandro jovem de “Nove Rainhas”). “Gastón tem uma generosidade e um compromisso como ator que lhe permitiram manter-se no projeto por quatro anos. Levei-o às Malvinas e uma vez lhe disse que, se ele conseguisse, nem que fosse por 15 segundos, transmitir o momento por que passa um menino de 18 anos a quem não se pode pedir que pense na morte, já seria suficiente”, diz Esteban. “Gastón conseguiu isso de maneira fantástica.”
Ao custo de US$ 1,2 milhão, o longa levou cinco anos para ser concluído, depois de obter recursos argentinos e espanhóis. Em cartaz na Argentina há dez semanas, já foi visto por mais de 350 mil espectadores, sinal para Bauer de que “hoje, finalmente, há interesse real nesse assunto”.
Ao lado da trajetória fictícia de Leguizamón, “Iluminados por el fuego” apresenta imagens de arquivo argentinas e britânicas e conteúdo resultante de entrevistas feitas com vários ex-combatentes. “Adotamos um trabalho de investigação como se estivéssemos tratando de preparar um documentário”, explica o diretor. “Escrevemos um roteiro que, se não chega a respeitar completamente o livro, mantém seu foco no olhar humano. Antes de fazer esse filme, não sabia da quantidade de suicídios que aconteceram por conta da guerra.”
“A sociedade se calou sobre as Malvinas porque também foi cúmplice de Leopoldo Galtieri (1926-2003, então presidente do país). A ´desmalvinização` derivou em mortes. Não houve psicólogos, nenhuma política de Estado que desse suporte aos soldados depois que voltaram. Isso fez com que o número de suicídios entre eles fosse maior do que as mortes em combate terrestre. Há 309 suicídios oficialmente registrados -mas fala-se em até 400-, contra 267 soldados que morreram em confrontos nos campos das Malvinas”, contabiliza Esteban.
O roteiro tem autoria de Bauer, Esteban, Borri e Miguel Bonasso, e procura não perder de vista a perspectiva humana sobre uma circunstância causada por objetivos eminentemente políticos. “A primeira coisa que havia em mãos era o livro de um ex-combatente. Que não faz análises políticas, geomilitares, ideológicas. Que traz, sim, o olhar de um jovem levado a enfrentar um dos Exércitos mais poderosos do mundo”, pondera o cineasta sobre o livro do jornalista.
O filme é também resultado de uma busca por sanar anseios internos dos dois autores. Dono de uma carreira marcada por produções em que o centro está sempre situado em figuras emblemáticas de seu país -Eva Perón, Cortázar, Borges-, Bauer encontrou nas Malvinas mais uma oportunidade de tratar de seu tema favorito: personagens e fatos históricos argentinos. “Isso é algo que resulta de uma questão muito interior, sou muito marcado pela história, é algo bastante arraigado em mim, um círculo em que a mente se mantém presa”, afirma. “Como se fosse uma maldição interna”, define, rindo. O diretor se divide agora entre as alternativas de começar a produzir uma ficção ambientada nos anos iniciais da ditadura ou priorizar um documentário sobre Che Guevara.
“Quando você tem 18, 19 anos, com todas possibilidades de vida pela frente, não pensa em morrer”, afirma Esteban. “Esse tema da morte, que tanto me atormentava, foi levado ao livro, sob a forma de como a sentia, como me afetava. Estou satisfeito que essa história agora pertença a outras pessoas e que os soldados possam se sentir refletidos no filme.”
Hoje, ainda às voltas com assuntos internacionais, mas a partir do terreno mais seguro do relato jornalístico, Esteban vê os conflitos contemporâneos como “aberrações”. “Sou antibélico”, diz o jornalista em entrevista a Trópico, concedida durante uma pausa sua na cobertura que realiza da Cúpula das Américas, em Mar del Plata, onde se reúnem presidentes de todo o continente. “Sou totalmente contra isso, ´os que mais podem` contra ´os que menos podem`, contra essa maneira de lutar e olhar a vida apenas através de interesses comerciais. Acredito que a palavra, e não as armas, é o que pode mudar o mundo.”
* É jornalista. Vive em Montevidéu.
Posted by Sandino at 09:58 AM | Comments (2)
janeiro 30, 2006
A hora da vingança
por Jairo Lavia
Os Jogos Olímpicos de Munique, em 1972, na antiga Alemanha Ocidental, desenvolviam-se em clima de paz e harmonia até que na noite de 5 de setembro 11 atletas israelenses são seqüestrados e mantidos reféns pelo grupo de guerrilheiros palestinos Setembro Negro. Dois membros da equipe são mortos. A tensão cresce e um fracassado plano de resgate da policia alemã resulta em massacre. Aos olhos do mundo, o evento torna-se um trágico reality show, com mocinhos e bandidos. Após 21 horas e uma desastrada ação policial no aeroporto militar da cidade, terríveis palavras são pronunciadas pelos jornalistas: “Estão todos mortos”. Reféns, cinco seqüestradores e um policial.
Esse é o preâmbulo para o assunto principal do filme Munique, de Steven Spielberg: a contra-ofensiva israelense nos meses que se seguiram ao atentado terrorista. O filme é narrado pela ótica de Avner (Eric Bana), o oficial da inteligência que abandona a mulher, grávida de seu primeiro filho, e sua identidade para caçar e matar os 11 homens acusados pelo serviço de inteligência de Israel (Mossad) de planejar o ataque terrorista.
Spielberg pisou em terreno minado ao decidir levar às telas as ações do governo israelense depois do atentado de Munique e, de certa forma, reavivar o conflito entre judeus e palestinos. Não há dúvida de que um filme como esse provocaria grandes discussões entre os povos envolvidos em questões étnicas e religiosas. Quando da sua estréia nos cinemas mundiais, Munique provocou controvérsias, com reações dos dois lados, israelense e palestino, que o acusam de ser tendencioso, inverossímil e superficial na abordagem dos fatos da operação denominada Cesaréia. Para o correspondente da revista Time em Jerusalém e autor do livro Striking Back sobre o atentado em 1972, Aaron Klein, o filme é uma grande invenção do diretor.
Filme de Steven Spielberg concentra-se na missão do Mossad para eliminar os mentores do atentado nas Olimpíadas de 72
Spielberg montou o roteiro com base no livro A Hora da Vingança, do canadense George Jonas, a partir do relato do próprio Avner e cercou-se de especialistas no assunto. Polêmicas à parte, ele construiu um thriller de espionagem inspirado, cuja força se deve a um roteiro que privilegia o âmago do agente, o que coloca o filme também como um excitante drama emocional.
O grupo de agentes liderado por Avner percorre vários países em busca de informações e à caça dos terroristas. À medida que os alvos vão sendo eliminados, cresce a crise de consciência nos próprios agentes e muitas perguntas ficam sem respostas. Aos poucos, percebemos que o herói de Munique agoniza e se esvaece em dúvidas. “Quem estamos matando?”.
Por outro lado, a primeira-ministra israelense Golda Meier se pergunta, ao despachar o agente para a missão: “Será que o único sangue que importa é o judeu?”
O que se vê na tela são cenas e diálogos longe de serem frívolos e passivos. Avner questiona a si mesmo a aos preceitos judaicos, como se perdesse a inocência conforme fortes imagens ricocheteiam na mente do espectador – ora com o clima de expectativa dos ataques sorrateiros do Mossad, ora com os flashes do atentado terrorista.
Não há vencedor – justamente por esse filme valorizar o espectador e deixar de lado o ego de seu diretor. Para os dois lados são dados valores parecidos - e essa é uma das principais críticas feitas por israelenses e palestinos. Pesado na balança, o discurso spielberguiano funciona bem como objeto de reflexão, mesmo que muitas vezes penda para um dos lados: o de que a vingança israelense foi absurda e questionável.
Em Munique o espectador ganha um thriller de espionagem, com boa dose de suspense (que envolve o grupo de justiceiros do Mossad e o elo criado por estes com os informantes e as relações de Avner com sua família). Pelo apresentado, pode-se chegar a conclusão de que houve sim uma noção de que a importância dos fatos se sobrepõe à polêmica e às facilidades partidárias. E essa é a grande sacada de Munique.
Spielberg está tão bom quanto em grande parte de sua filmografia. A diferença é que em Munique há uma dose cavalar de sobriedade e discrição em sua narrativa. O cineasta, descendente de judeus, tinha tudo para fazer um filme “chapa branca” e com clichês sentimentalóides. Ao contrário, há por trás do desenrolar político-cultural de Munique um enredo maduro, sem concessões, e menos espetacular, se for comparado a outras investidas do diretor em temas políticos como A Lista de Schindler (1993) e O Resgate do Soldado Ryan(1998).
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Saiba como destinar imposto a programas sociais
O Portal RISolidaria disponibiliza em seu site informações sobre como é possível destinar parte do imposto de renda a programas sociais de amparo às crianças e adolescentes.
De acordo com a lei, até 6% do imposto de renda, no caso de pessoa física, apurado anualmente podem ser repassados aos Fundos dos Direitos da Criança e do Adolescente. Os recursos são depositados em contas bancárias controladas pelos Conselhos Municipais, Estaduais ou Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente.
O Portal RISolidaria é um programa da Fundação Telefônica que visa fortalecer o trabalho de entidades dirigido à promoção dos direitos da criança e do adolescente.
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Martin Luther King - O sonho assassinado
por Pascal Marchetti-Leca
Atlanta, 1935. Uma cabecinha encarapinhada vagava com sua candura perspicaz pela Auburn Avenue. O olhar perturbador, o passo medido. O menino, o pensamento longe, às vezes interrompia o passeio para jogar a bola que levava entre o braço e o peito. Improvisava acrobacias e batia a bola ao mesmo tempo que declamava passagens do Livro da Sabedoria: "Amai a justiça, vós que julgais a terra, pensai no Senhor com retidão, procurai-o com simplicidade de coração". Em seguida, mudando de atitude, tornava a pôr a bola debaixo do braço. Apesar de jovem, o garotinho sabia efetivamente que, mesmo sendo sagradas, as Escrituras, das quais as pessoas se desviam, não deixavam de ser vãs. E por mais de um motivo.
Filha de Adam Daniel Williams, o pastor da igreja batista de Ebenezer, que desde a década de 1910 militava na NAACP (Associação Nacional para o Progresso de Pessoas de Cor), sua mãe, Alberta, inculcou-lhe os princípios da moral evangélica. Oriunda de um meio privilegiado, ela havia freqüentado os melhores colégios. Ainda que sempre denunciasse a discriminação racial, a verdade é que nunca as sofreu diretamente. No dia 25 de novembro de 1926, casou-se com Mickael Luther King, filho de um meeiro de Stockbridge que estava em Atlanta para estudar.
Antecipando-se ao sonho igualitário do filho, Mickael, que trocaria o nome por Martin, teve participação na luta pela emancipação do povo negro. "Meu pai [...] decidiu nunca mais entrar num ônibus da cidade por ter presenciado certas brutalidades de que eram vítimas os passageiros negros. Foi ele que assumiu o comando da luta [...] pela igualdade de salários dos professores e teve um papel preponderante, nos tribunais, para que se eliminasse a segregação nos elevadores", recordaria King ao receber o Nobel da Paz.
Martin Luther King : "Sonho que um dia, nas rubras colinas da Geórgia, os filhos dos antigos escravos e os filhos dos antigos senhores hão de se sentar juntos à mesa da fraternidade. [...] Sonho que meus quatro filhinhos um dia hão de viver num país em que não serão julgados pela cor da pele, e sim pela natureza do seu caráter...".
Em 1931, com a morte de Williams, seu genro o sucedeu à frente da paróquia de Ebenezer. Martin Luther King pai conquistou a confiança da comunidade negra e a estima reticente dos brancos. Alberta e ele cuidavam zelosamente dos três filhos. Longe dos guetos, Christine, Adam Danmiel Jr. e, naturalmente, o caminhante da Auburn Avenue tiveram uma infância mimada de classe média. "Meu pai, que punha a família acima de tudo, sempre nos proporcionou o necessário. Embora tivesse apenas um salário normal, seu segredo era ser mestre na arte de [...] administrar o orçamento. [...]A vida me foi dada como um presente de Natal", comentou certa vez King.
Nascido em 15 de janeiro de 1929, Mickael, que, tal como o pai, posteriormente adotaria o nome Martin, começou freqüentando escolas públicas da capital da Geórgia. Não tardou a amargar a experiência da segregação. Na escola, o menino não compreendia que teria de se afastar do companheiro de brinquedos, um aluno branco com o qual gostaria de dividir a carteira: "A ruptura se consumou quando ele me contou que seu pai o havia proibido de brincar comigo. Nunca vou esquecer o choque imenso que isso me causou".
Em 1944, ao concluir um curso brilhante num estabelecimento de ensino secundário da cidade, ingressou no colégio universitário de Morehouse, onde já o precediam "três gerações de King". Optou pela teologia. No dia 25 de fevereiro de 1948, foi ordenado no templo de Ebenezer. "Eu me criei na religião. Meu pai é pastor, meu avô era pastor, meu bisavô era pastor, meu único irmão é pastor, o irmão de meu pai é pastor. Portanto, eu não tinha escolha", explicou. Promovido a assistente na paróquia do pai, Luther King continuou o estudo de sociologia. No mesmo ano, trocou Morehouse por Chester, na Pensilvânia.
Lá se matriculou no seminário de Crozer, onde se diplomou em teologia em 1951. A seguir, decidiu aprimorar a formação na universidade de Boston. E, enquanto se dedicava à redação de uma tese, apaixonou-se por uma estudante de musicologia, Coretta Scott, com quem se casou pouco depois. Martin Luther King pai abençoou o casal em 18 de junho de 1953. Dessa união nasceram Yolanda Denise, apelidada Yoki (1955), Martin Luther III (1957), Dexter Scott (1961) e Bernice Albertine (1963).
Inicialmente, o jovem casal se fixou em Montgomery (Alabama), onde, apesar da forte tensão social, King aceitou, em 1954, o ministério pastoral de Dexter Avenue.
Imbuído da obra dos grandes filósofos (Platão, Aristóteles, Rousseau, Locke), do sociólogo Walter Rauschenbusch e do pensamento de seu mestre, Gandhi, concluiu, paralelamente, o trabalho de pesquisador. A universidade de Boston acabava de lhe conferir o título de doutor quando irrompeu um conflito racial cuja violência haveria de orientar todo seu pastorado. No dia 1o de dezembro de 1955, Rosa Parks, costureira de 42 anos [que morreria no final de 2005 com 92 anos], tomou um ônibus a fim de voltar do trabalho para casa. O veículo não tardou a ficar lotado. O motorista não teve dúvidas em mandá-la ceder o lugar a um passageiro branco. Ainda que educadamente, Rosa Parks recusou se levantar. Foi presa imediatamente. Ativista dos direitos civis de grande influência na comunidade negra, Edgar Daniel Nixon interferiu, encarregando-se de pagar a multa a que Rosa Parks fora condenada.
Os chefes de clãs e os pastores se mobilizaram para defendê-la e fundaram o MIA (Movimento pelo Progresso de Montgomery), à frente do qual colocaram Martin Luther King. Enquanto se organizava o boicote dos ônibus, King esboçou sua doutrina da não-violência - "Amai vossos inimigos, abençoai os que vos maldizem e orai pelos que vos caluniam" - e, pouco a pouco, erigiu-se defensor dos negros dos Estados Unidos.
A municipalidade procedeu a prisões em massa (de numerosos pastores, entre os quais o próprio King) que, longe de abafar o fato, chamaram a atenção da imprensa. A empresa de transporte coletivo de Montgomery ficou à beira da falência. As autoridades pressionaram King para que pusesse fim ao boicote. Sucediam-se as intervenções e as intimidações. Em janeiro de 1956, seu domicílio chegou a ser alvo de um atentado. King resistia. No entanto, em 4 de junho de 1956, o tribunal federal do distrito condenou as normas segregacionistas vigentes no transporte coletivo. O prefeito recorreu à Suprema Corte, que, no dia 13 de novembro seguinte, confirmou a sentença. Naquela noite, os capuzes brancos e as violências da Ku Klux Klan não intimidaram ninguém.
No entanto, ainda não era o caso de se acomodar numa presunção de vitória. A partir de janeiro de 1957, os porta-vozes de dez estados sulistas se reuniram para fundar a SCLC (Conferência dos Dirigentes Cristãos do Sul). King foi eleito seu presidente. A organização apoiava sua luta no respeito generalizado às novas disposições legais em matéria de transporte coletivo e no direito de voto dos negros. Incansável, ele percorreu os Estados Unidos, tendo pronunciado mais de cem discursos em um ano. Discípulo de Gandhi, pregava a não-violência. Sabia que "o sofrimento tem o poder de converter o adversário e de abrir seu espírito que, do contrário, permanece surdo à voz da razão". Publicou seu livro Combates pela liberdade em 1958, envolto num humanismo confiante, seu credo pacifista.
Mais do que nunca, King foi alvo de acusações. No dia 20 de setembro de 1958, manipulada por uma campanha de difamação arquitetada contra ele, uma doente mental, que o supunha comunista, cravou-lhe um corta-papel no peito. O pastor escapou à morte por um triz. Interpretando essa agressão como um sinal, decidiu viajar à Índia, a fim de sincronizar seus passos com os de Gandhi. À margem do Ganges, King entreviu "a luz que pode brilhar nas trevas". Tanto que, no fim de sua peregrinação, anotou em seu diário: "O caminho da submissão conduz ao suicídio moral e espiritual. O caminho da violência conduz os sobreviventes ao rancor e os destruidores à bestialidade. Mas o caminho da não-violência leva à redenção [...]".
Reforçado em suas convicções, King retornou ao Alabama. Ali, em breve, seria obrigado a fazer uma escolha. Como a presidência da SCLC conflitava cada vez mais com sua atividade pastoral, voltou a Atlanta, onde, em 1960, passou a ser pastor adjunto da igreja de Ebenezer. A partir de então, a ação militante se alastrou por todo o Sul. Tal como Montgomery, Greensboro foi palco de uma revolução em desenvolvimento. Nessa cidade da Carolina do Norte, quatro estudantes negros desafiaram a polícia, "sentando-se no interior" de um restaurante, apesar das leis segregacionistas. Foi o início dos famosos sit-in. Esse movimento se estendeu a dezenas de cidades. E, mesmo sem ter sido seu instigador, King participou do rápido desenvolvimento do movimento estudantil. Preso numa manifestação em Atlanta, foi condenado a quatro meses de trabalho forçado na penitenciária de Reidsville (Geórgia). Mas Robert Kennedy, preocupado com a disputa da presidência da qual participava seu irmão, obteve do juiz a anulação da pena. Mediante o pagamento de fiança, é claro.
Para comprovar a eficácia da não-violência, King lançou a campanha de Birmingham em 1963, visando à dessegregação dos cafés e das grandes lojas de departamentos. Tratava-se de aplicar um golpe fatal contra a discriminação na própria cidadela da Ku Klux Klan. Em 12 de abril, foi preso por infração da proibição das passeatas.
Pressionado pelas autoridades religiosas brancas para pôr fim às agitações, endereçou-lhes, no dia 19 de abril, uma Carta da prisão de Birmingham, que viria a ser o manifesto do Movimento pelos Direitos Civis. "Uma lei injusta é uma lei humana sem raízes na lei natural e eterna. Toda lei que eleva a personalidade humana é justa. Toda lei que impõe a segregação é injusta porque a segregação deforma a alma e prejudica a personalidade." John Kennedy, agora inquilino da Casa Branca, e o irmão Bob intervieram uma vez mais para tirá-lo da prisão.
Em 20 de maio, a Suprema Corte declarou inconstitucional a legislação segregacionista de Birmingham. Algumas semanas depois, Kennedy anunciou uma nova legislação sobre os direitos civis. No dia 28 de agosto, realizou-se a Marcha sobre Washington, no fim da qual Martin Luther King fez seu mais célebre discurso: "Eu tenho um sonho". Porém, em 22 de novembro seguinte, King viu no assassinato de John Kennedy a premonição de seu próprio fim: "É o que também vai acontecer comigo. Esta sociedade está doente!" Mesmo assim, em 2 de julho de 1964, viajou a Washington para presenciar a assinatura da lei dos direitos civis (o Civil Rights Act) pelo presidente Lyndon Johnson.
Porém, sem o direito às urnas e à mercê da pobreza endêmica, as gerações de negros continuavam vivendo à margem da prosperidade. No dia 14 de outubro de 1964, Martin Luther King recebeu o Nobel da Paz. Encarou a distinção como o reconhecimento da legitimidade de sua luta pela comunidade internacional. "Aceito hoje o prêmio com uma fé inquebrantável nos Estados Unidos e com uma fé inabalável no futuro da humanidade [...]", disse na cerimônia de 10 de dezembro, em Oslo. Simultaneamente, J. Edgar Hoover, o chefe do FBI, contrariado com tantas homenagens, ameaçou: "Devemos segui-lo passo a passo [...] como o negro mais perigoso para o futuro deste país."
Sem embargo, Martin Luther King organizou a marcha de Selma, em 25 de março de 1965, que foi "o mesmo que Birmingham em 1963. Estava em jogo o direito de voto, que substituiu o problema do transporte coletivo no espírito de um vasto povo ansioso [...] por ter voz na questão do seu próprio destino." Depois de dezenas de marchas de protesto e de algumas centenas de mortos, Johnson assinou o Voting Rights Act, que condenava a segregação nos locais públicos e protegia o direito de voto dos negros.
No dia-a-dia, tais medidas não passavam de ilusão. Embora não tivesse perdido o carisma, King convencia cada vez menos. Desanimado, traído, passou a radicalizar suas posições e a pregar "a participação no poder". Em 1967, declarou-se contrário à Guerra do Vietnã, atitude que provocou divergências no seio da SCLC e suscitou a desconfiança do FBI.
Quando organizava a Marcha dos Pobres sobre Washington, King decidiu ir a Memphis (Tennessee) levar seu apoio aos lixeiros em greve que haviam sido reprimidos. Um morto, prisões em massa. Caminhou pela última vez com os oprimidos. No dia 3 de abril de 1968, fez o último discurso no templo do bispo Charles J. Mason: "Pouco importa o que me acontecer agora, pois já cheguei ao cume da montanha [...] Olhei à minha volta. E vi a Terra Prometida. Pode ser que não entre nela com vocês [...] Estou feliz esta noite [...] Nada me preocupa [...]"
No dia seguinte, detendo-se junto ao balcão do Motel Lorraine, ele falou a um amigo que passava: "É claro que esta noite, você vai tocar Senhor, segura a minha mão. Toque-a bem para mim". Nesse exato momento, ouviu-se um disparo. King tombou com um buraco na garganta.
Posted by Sandino at 09:11 AM | Comments (0)