junho 10, 2010
Futebol, entre as torcidas e a guerra resta a grande arte
Por Enio Squeff - Originalmente publicado em Carta Maior
A Copa do Mundo vai começar e os bilhões de pessoas que irão assistí-la, talvez espantem o futuro: na hipótese de que ela não provoque uma hecatombe - uma guerra que se estenda do campo às torcidas; e delas às cidades e aos mundos - fica sempre a alternativa, também como suposição, de que o futebol dirima as dúvidas e algumas dívidas.
Lênin e Napoleão adoravam xadrez: nunca acolheram as possibilidades de que se satisfizessem com o jogo, antes de se jogarem às guerras reais; ou de que, em princípio, aceitassem as guerras dos jogos, como realidades e não simulacros das próprias. No tempo da ditadura aceitavam-se as duas. O ditador Garrastazu Médici era quase fanático pelo futebol; não se pode dizer que desprezasse a tortura, ou que não encarasse os tiros de verdade, como a outra forma de dirimir as dúvidas que a oposição consentida tentava lançar a sua política.
Mesmo assim, o futebol não é o pior que mobiliza tanta gente no mundo inteiro - dos israelenses aos palestinos, ou mesmo dos europeus da OTAN, aos afegãos talebans que se têm, mutuamente, como inimigos figadais. É de se perguntar se nos dias das partidas, os dois lados buscarão uma trégua para não terem de se incomodar com outra coisa do que torcer para seus respectivos times que estarão em campo. A maior parte dos homens responsáveis pelas guerras, ou senhores dela digamos, têm como certo que o futebol é uma loucura alienante, até perigosa: prefeririam que seus homens e mulheres estivessem a fazer coisas mais sérias do que berrar ao gol da sua equipe. Melhor seria, quem sabe, que pegassem nas suas armas e saíssem a cumprir sua obrigação. Com muito melhores razões, é o mesmo que dizem certos homens de negócios: há uma infinidade de automóveis, de calças jeans ou mesmo de cervejas e de camisetas (inclusive da seleção), a serem fabricados no período dos 90 minutos de cada jogo - eliminem-se, portanto, as disposições em contrário.
No entanto, os EUA talvez sejam o único país da terra que nem sonham em dispensar empregados para verem a Copa. O mesmo não se pode dizer de outros países, muito menos do Brasil. O fenômeno tem suas razões sociais ou de loucura coletiva como se queira, mas deve haver explicações para a loucura do futebol.
Anos atrás, ainda no tempo da Ditadura, o jornal "O Estado de S.Paulo" tentou uma explicação para o fenômeno; chegou a reunir alguns intelectuais, em entrevistas, como o comentarista esportivo gaúcho, Ruy Carlos Ostermann - que na época era também professor de filosofia, autor de livros - Luis Fernando Veríssimo, e alguns mais. O resultado não chegou a lugar nenhum- mas o compositor Gilberto Mendes, que há anos mora em Santos, e que lecionou durante muito tempo na Universidade de São Paulo, em vez de dar uma resposta, escreveu uma música "Santos Football Music". Não teve sucesso em campos de futebol, mas foi amplamente aplaudido em salas de concerto.
O uso de gravações de locutores esportivos, a irradiarem partidas, além da participação do público a aplaudir ou a vaiar, foram sempre apreciadas nas muitas apresentações que sua obra mereceu. Só em Varsóvia, durante um dos mais importantes festivais de música contemporânea do mundo, obteve um sucesso estrondoso. No final da peça, o regente empunha uma bola que está no pódio, e dá um cabeçada em direção aos músicos da orquestra - coisas do teatro musical, mas que, para os estrangeiros, que se divertiram ( e ainda se divertem a cada execução da peça), passou, de qualquer forma, como "coisa de brasileiro".
O professor José Miguel Wisnick, da USP, escreveu, há pouco, um livro a respeito do futebol. Menciona-se o mestre, porque a sua inteligência deve ter respondido em parte à pergunta sobre esse sucesso de uma modalidade esportiva que, de qualquer forma, continua um mistério.
Igualmente importante, mas bem anterior, foi um livro escrito por um filósofo alemão; título da obra:"O futebol como ideologia", Não chegava a ser uma diatribe contra o esporte que ele, já então, sabia ser o mais popular do mundo, mas discutia a relação entre o futebol e o mundo capitalista: o "ludopédio" como o inventou um filólogo brasileiro de gosto duvidoso- para o qual o jogo (ludo, do latim ludus), a ser disputado com o pé ( do latim, pes, pédis) seria a tradução mais adequada para a expressão inglesa, "football - traduziria, na paixão das massas, a completa submissão ao mercado, para aquilo que haveria de mais oficialesco e alienante.
É uma discussão que dá muito pano pra manga. De um esporte jogado com os pés e não com as mãos, o que avulta é, sobretudo, a habilidade artesanal. Num mundo onde o artesanato é cada vez mais relegado, graças aos computadores que levantam máquinas, que desenham o mundo por nós, que corrigem nossos erros ou empurram robôs, o fascínio por um esporte que exige um enorme desforço físico - um domínio sobre uma esfera que erra por sua condição de bola de couro- parece ter o dom de inflamar os corações mais que tudo o que se possa imaginar.
No mais, o número de atletas nele envolvidos, torna-o o esporte mais próximo da vida, justamente por mais democrático: não vence o mais forte- e se o vigor tem importância, não tem o suficiente para poder se sobrepor ao mais fraco. As regras são claras e equânimes: vale para todos a punição aos atos mais violentos. E não se descarte o muito de balê que o futebol guarda em si: os passos milimetricamente calculados, imbuem-se, de fato, de uma precisão de dança. Não há como fugir ao embate, completar o drible ou mesmo a disputar uma bola - sem que a elegância do gesto se construa nos pródromos das regras. Há muito mais, enfim, o que, em última análise, não desvenda muito. "A música diz por mim" teria explicado um compositor aos que lhe cobravam uma relação com a sua obra. Na grande jogada, o futebol explica-se por si mesmo. E fala pelo jogador ou por alguns deles em conjunto.
Paráfrase da vida? Pode-se, realmente, voar ao infinito. O homem que joga com uma bola nos pés, tem a seu favor a sua humanidade: só o homem dispõe-se ao lúdico, ao jogo pelo jogo. Liszt ao piano e Paganini ao violino, esses virtuoses que levaram o domínio dos instrumentos a exigências incríveis, inimagináveis, julgavam, com razão, que a posteridade os agradeceria por poderem demonstrar o quanto um mote - a justificativa da música, digamos - lograva o tudo que eles faziam, a deixar em aberto que outros poderiam até superá-los, mas só depois de fazerem o mesmo que eles. Prestidigitadores da música, dizia-se. Não era bem assim, já que a música persistia. O mesmo se pode dizer dos jogadores de futebol: há uma meta a ser atingida, o gol, a vitória - essas coisas que os torcedores querem para a sua equipe: mas quem disse que o homem aqui dispensa o mero virtuosismo?
Houve um anticlímax no anúncio da lista de jogadores brasileiros para a copa do mundo deste ano na África do Sul. Ambos os participantes da equipe técnica do Brasil falaram em "patriotismo". Deram às torcidas o nome que a sua paixão justificaria. Tem o jeito de, afinal, ser isso mesmo: se as razões que nos fazem torcedores da equipe de nossos países, são diferentes daquelas que impulsionam milhões a gritar os nomes de seus times de preferência - que outra palavra define a mobilização de bilhões, com as respectivas bandeiras a pular e a gritar, quando não a soltar rojões, promover buzinaços e sair às ruas em euforia a cada vitória? Um grande jornal, em contraposição ao que disseram os técnicos, chegou a sacar as tirada de Samuel Johnson sobre o patriotismo: como dizia e repetia o falecido jornalista Paulo Francis, a citar o grande historiador e lingüísta inglês, o patriotismo seria a última justificativa dos canalhas. É uma boa tirada - mas é difícil definir de outra forma a paixão a que são levados os homens do mundo em torno da paixão pelo futebol. Parece preferível o patriotismo num pacífico jogo de futebol, do que aquele a que não fogem os soldados, com armas ensarilhadas, a invadirem países e a se matarem nem sempre de maneira explícita, em nome da pátria, mas sempre a terem o tal patriotismo como bordão.
Admira, aliás, que a palavra não tenha sido usada durante a ditadura militar. Parece que a má consciência dos militares que nos encilharam, guardava-se de não cair num lugar-comum - na obviedade, na verdade - de que um jogo de futebol pode ser um substitutivo de muitas coisas - entre elas a de considerar inimigos de morte aos que não pensam como nós. Ou que, por ventura, nasceram em outros países. E que se animam com a idéia de verem desfraldadas as suas bandeiras nos finais de um torneio mundial de futebol.
Em 1969, Honduras e El Salvador foram à guerra depois de uma partida de futebol entre as seleções dos dois países. O episódio ficou conhecido como "Guerra do Futebol" e tudo teria começado depois que a seleção de El Salvador venceu a de Honduras por 3 a 2. Houve protestos, fechamento de fronteiras, declaração de guerra e alguns milhares de mortos, de ambos os lados. Aparentemente uma guerra entre duas torcidas que envolveram os respectivos exércitos. Na verdade, em função da repressão dos militares que deram um golpe de estado em seu país, os salvadorenhos vinham há muito disputando empregos em Honduras, já que não tinham terras para trabalhar em El Salvador. O futebol foi apenas o pretexto que faltava para uma tensão entre duas comunidades pobres. Que além de tudo, tiveram de amargar o que, na época era uma novidade tragicômica: morrer por causa do futebol.
Hoje isso é corriqueiro - mas há que se admitir, que falar de patriotismo a propósito de uma copa do mundo, talvez não tenha nada de refúgio de canalhas - é isso mesmo. Ou será que quando sãopaulinos matam corintianos e esses aos palmeirenses, e colorados que matam gremistas e vice-versa, nessas disputas de morte entre torcidas têm esses torcedores outra razão do que... do que é mesmo?
A propósito, um dos treinadores da seleção brasileira, disse na coletiva em que anunciou os convocados, que não sabia se a ditadura brasileira tinha sido má ou ruim. Explicou que era menor de idade na época, e que, como admitiu aos jornalistas, é um homem que não tem cultura. Supõe-se que parece ter levado ao pé da letra o ditado de que ao sapateiro não convém ir além das sandálias. Talvez lhe devessem esclarecer que ler apenas o noticiário esportivo dos jornais e revistas (mesmo que brasileiros), não absolve ninguém da pecha de iletrado, muito menos o justifica como inconseqüente - o que é gravíssimo para alguém que lida com o inconsciente de milhões ou até de bilhões de pessoas.
Insólito, para dizer pouco.
Em 1969, Honduras e El Salvador foram à guerra depois de uma partida de futebol
Posted by Sandino at junho 10, 2010 01:04 PM